É notória, no Brasil, a aversão ideologizada institucional de tratar de assuntos históricos, tomando a história oral como fonte de verdade. Na Região Sul da Bahia não é diferente. Vale o que está escrito, documentado. Se bem que se devam levar em consideração os avanços que os Cursos de História vêm conseguindo, há temas lacunares que a documentação escrita não preenche e em relação aos quais a história oral ainda não foi levada em consideração. Entre eles, os descendentes dos escravos do Engenho de Santana, que se situou em Ilhéus.
Acreditamos ter contribuído para resgatar parte desta história. Foi justamente por isso que partimos dos relatos preservados no Ilê Axé Ijexá, em Itabuna, fundado em 1975, pelos descendentes de Inês Maria, de nome nagô Mejigã, negra oriunda de Ilexá, sacerdotisa de Oxum. Seus descendentes preservam vários relatos, que têm sido narrados de geração em geração em geração. Nesses relatos, parte da história mais ampla. Alguns dos descendentes de Mejigã terminaram por fundar um terreiro de candomblé. Tomamos, então, um terreiro de candomblé como foco de resistência, sobretudo da preservação dos relatos orais de fatos que contam parte da história de Ilhéus, consequentemente, da Região Sul da Bahia.
No rastro da Lei 10.639/03, complementada pela Lei 11.645/08, demos ênfase à história dos afro-descentes. Esse foi o grande foco direcionador desta coletânea. Daí, metodologicamente, a construção de molduras: uma, mais ampla, focalizando a escravidão no mundo; uma outra, com considerações sobre o Brasil escravocrata; uma outra mais, abordando a escravidão em Ilhéus; outra, a escravidão no Engenho de Santana; mais uma, focalizando o Ilê Axé Ijexá e mais outra, rastreando a história de Mejigã através de relatos orais de suas bisnetas, todas elas já falecidas. Tais relatos, no entanto, ainda permanecem conservados na memória dos descendentes de Mejigã, no Ilê Axé Ijexá.
Sabe-se que Mejigã foi escrava no Engenho de Santana e, por isso mesmo, a escravidão foi o tema transversal que perpassou os enfoques elaborados nos textos componentes deste livro.
É instigante compreender como o segmento social, constituído pelo povo de santo, resistiu e ainda continua resistindo a toda sorte de políticas de exclusão. Sabe-se que o Estado legislou a exclusão e impediu a ascensão dos negros e afrodescendentes. Então, a partir dos relatos sobre a vida de Mejigã, buscamos esclarecer como esses afrodescendentes resistiram e de quais os mecanismos dessa resistência foram postos em prática. Se eles foram submetidos a técnicas de invisibilidade, também souberam articular.
O mundo nos exige dinâmica e nos exige o novo, nem que seja o mesmo que se altera. Por isso, nossa preocupação em refletir sobre o real. O real nos oferece um quadro em que o povo de santo é combatido sem tréguas por várias denominações religiosas, enquanto se preserva dentro dos muros dos terreiros verdadeiras preciosidades que, vindo à luz, melhor explicam a nossa gênese, formação e cultura. Permeiam o nosso imaginário da Região sul da Bahia elementos formadores de nossa identidade, rejeitados, negados, olvidados. E aqui se articulou uma tentativa de identificar esse imaginário, desvelando a sinuosidade de um movimento, no mínimo esquizofrênico, que tanto tem caracterizado a sociedade que criamos, baseada em autoritarismo, elitismo e exclusão.
Precisamente por isso buscamos dar voz ao excluído, para que ele mesmo narrasse sua própria história. E porque, entre nós, muitos dos documentos dessa história são orais, tivemos que documentar a história de Mejigã pela via da oralidade. Enquanto objetivamos dar conta de parte da história regional, também traçamos a trajetória de Mejigã e de seus descendentes até a fundação e desenvolvimento do Ilê Axé Ijexá. A partir deste livro, essa história também passa a ter feição escrita. Acreditamos ter contribuído para a redefinição do perfil cultural da Região Sul da Bahia, através de um espaço de terreiro, para revelar a face afrodescendente dessa Região. Pensamos, desse modo, que fornecemos elementos que propiciem a inserção de questões ligadas ao conhecimento afrodescendente no currículo de educação das séries básicas.
O ato de voz ao excluído, no entanto, requer contextualização. Por isso mesmo, neste livro, levantou-se o cenário da escravidão a partir do enfoque especial ao Engenho de Santana, onde Mejigã, a escrava que veio de Ilexá, viveu e engendrou uma herança de resistência para os seus descendentes.
Acreditamos que, na divulgação das histórias preservadas numa comunidade afrodescendente, o seu saber e o seu conhecimento haverão de contribuir para a integração de saberes e quebra de preconceitos.
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Honradamente, a Biblioteca Ruy do Carmo Póvoas possui os livros escritos e ou organizado pelo nosso homenageado.
Trata-se de uma importante, fundamental e relevante obra essa especialmente, na qual predominam consistência histórica, elegância e uso da norma culta da língua portuguesa . Os ensaístas André Luiz Rosa Ribeiro, Carlos Roberto Árleo Barbosa, Flávio Gonçalves dos Santos, Ivaneide Almeida da Silva, Cátia Vinhático Pontes, Maria Consuelo Oliveira Santos, Marialda Jovita Silveira, Mary Ann Mahony Teresinha Marcis, fotógrafo André Elvas Falcão Soares e designer José Montival de Alencar Júnior foram muito felizes nesta produção coletiva, liderada pelo intelectual, babalorixá e membro da quinta geração de Inês Maria, de nome africano Mejigã, Ruy do Carmo Póvoas/Ajalá Deré/Katalumbá, que escreveu a apresentação e outros três textos.
No prefácio, Maria Luiza Nora(Baísa), intelectual, poeta e então diretora da editora Editus, evidenciou essa contribuição e reforçou valores que estão contidos neste Mejigã e o contexto da escravidão: “A Editus agradece a oportunidade de publicar uma obra desta envergadura e com esta função social – a de reparar injustiças, a de pôr luz no sombrio da história e valorizar um povo e as muitas Mejigãs que sustentaram o que poderia ter ficado pelo caminho.”