Chamava-se Maria Natividade Conceição, mas o povo a conhecia por Mãe Mariinha. Era negra retinta e legítima descendente da na¬ção Ijexá. Corpo miúdo, voz metálica, olhar severo e sabia acolher os que estivessem mergulhados na dor. Senhora de muitos mistérios, sua idade era um segredo. Muitos afirmaram que ela era centenária, na época de seu falecimento, em 1981.
Quando a conheci, eu vivia a maravilha de minha juventude. Foi numa tarde de verão, na antiga Rua da Linha. Eu buscava os rema¬nescentes da nação Ijexá e fui à sua procura, para que ela me ini¬ciasse nos ritos daquela nação. E então, descobri aquela maravi¬lhosa mulher, senhora de um profundo saber, sacerdotisa de fé incom¬parável, ialorixá de uma competência inusitada. Com ela, convivi em aprendizado durante 15 anos.
É difícil destacar a qualidade principal que compunha a personalidade de Mãe Mariinha. Dignidade, coragem, humildade foram atributos do seu viver. Mas eu diria que Mãe Mariinha se caracterizava principalmente por ser mãe dos filhos que ela não gerou. Nascida de ex-escravos, não cultivou a amargura, nem carregou complexos oriun-dos da escravidão. Erigiu-se além dos preconceitos brancos e negros e fez-se mãe da nação nazarena, rainha do povo Ijexá. E por isso mesmo, seu terreiro, o Agbássá de Iansã Dewí, era frequen¬tado por pessoas dos mais variados segmentos sociais. Severa sem ser injusta, meiga sem ser piegas, Mãe Mariinha sabia ouvir a todos que a procuravam na busca de soluções para seus problemas.
Dentro da religião do candomblé, ela era uma das últimas famo¬sas mães-de-santo que defendiam a aproximação com a Igreja Católica. Por isso mesmo, foi amiga íntima de vários sacerdotes católicos. Padre Hamílton, mesmo em Roma, mantinha correspondência com ela. Todos os sábados, antes de suas obrigações africanas, as rezadeiras da casa entoavam o santo Ofício de Nossa Senhora. Em lugar destacado do barracão on¬de se desenrolavam os rituais do candomblé, havia um altar católico e várias imagens chamavam a atenção. Devota extrema de Santo Antô¬nio, a quem ela identificava como Ogum, o orixá da guerra e terror do Maligno, celebrava anualmente o culto a esses dois santos que, no seu entender, eram o mesmo orixá.
Mãe Mariinha detestava a superstição, era inimiga da ignorân¬cia, mas amava os ignorantes. Abominava a subserviência e recebia a elite com a mesma do¬çura com que tratava os menos favorecidos. Inúmeras vezes ouvi sua repreensão veemente aos encabulados ou destituídos do vigor da fé e da esperança. E seus gestos e palavras contra a bajulação eram contundentes. Por tudo isso, Nazaré das Farinhas cultivou profunda ve¬neração por sua ialorixá.
O culto que Mãe Mariinha prestava aos seus orixás era manso e pacífico e se constituía um jugo suave de carregar. Seus rituais ce¬lebravam a festa da vida e abasteciam os participantes de vigor e energia. Anualmente, Mãe Mariinha fazia a Festa das Águas. O presente de Oxum e Iemanjá percorria a cidade, parava na porta da Igreja Matriz e o po¬vo vinha juntar-se aos fiéis do terreiro, para uma louvação única a Nossa Senhora de Nazaré, Rainha das Águas, a Oxum do candomblé. A quantidade de flores oferecidas pela comunidade era tamanha, que se necessitava de uma caminhonete para transportá-las. E Mãe Mariinha, com seus filhos-de-santo, embarcava em um saveiro e navegava até alto mar. Primeiro, a visita a um rio, para oferecer os presentes a Oxum. Depois, era a vez de Iemanjá, no oceano. O mar ficava coalhado de flores e Mãe rezava pelo bairro do Apaga Fogo, pela cidade de Nazaré, pelo Estado da Bahia e pela Nação Brasileira. Implorava as graças re¬comendadas por seus amigos, conhecidos e por todos os que sofriam o desamparo. Depois, enfrentava o mar na volta para o terreiro. Inúme¬ras vezes, a vi suportando tempestades, o barco jogando de um lado pa¬ra outro, as ondas molhando tudo. E ela, serena, confiante, tinha certe¬za absoluta de voltar em paz e a salvo.
Foi na década de 60. Por Nazaré passou um inglês que se encantou pela Bahia, por Nazaré das Farinhas e pelo povo do candomblé. Dele, sabe-se apenas que se chamava John, era poeta e não falava português. Um dia, ele se encontrou com Mãe Mariinha. Ela não falava inglês, mas percebeu intuitivamente a aflição de John. Estavam no Bahia Lanches e, ali mesmo, John apoiou sua cabeça no colo de Mãe. Ela alisou seus ca¬belos e rezou sua cabeça. John fechou os olhos e pareceu sonhar. Quando se levantou, estava sereno e emocionado. E em inglês, compôs um poema, ali mesmo, no bar, com o título de The dark lady of the light, a negra senhora da luz. Depois, John foi-se embora para nunca mais voltar.
Sim, Mãe era negra e misteriosa, igualmente aos de sua raça. Ne¬gra no ato e no pensamento, no gesto e na palavra. Tão misteriosamen¬te negra, tal qual seu orixá, Iansã, a senhora dos ventos e das tem¬pestades, aquela que é capaz de navegar todos os espaços sem estra¬nheza. Ela sabia das coisas dos negros e dos brancos. Sendo negra, cultuou o mistério dos orixás para ajudar os brancos. E convivendo com os brancos, não deixou corromper a sacralidade dos mistérios de seu culto negro.
Mãe Mariinha: a negra misteriosa, a misteriosa mãe do axé dos negros. E foi essa luz que John percebeu. Uma luz que transcende a barreira da cor da pele e dos idiomas e não precisa de palavras para se manifestar aos humanos. Brota do interior de quem tem convivência com o Amor. Mãe sabia que aquele poeta branco e estrangeiro precisava de Amor. E de seus dedos frágeis, deixou emanar a luz do afeto, da compreensão, da solidariedade e da compaixão, para aliviar as dores ocultas daquele estrangeiro, assim, gratuitamente
O Bahia Lanches permaneceu lá, ainda, por muito tempo, protótipo dos bares brasileiros. Um número incontável de pessoas transitou por suas portas. Muitas tão ca-rentes de compreensão e afeto, de um gesto amigo, gratuito, um alisar de cabelos, um afagar de cabeça. Outros bares surgiram em Nazaré das Farinhas, mas ficou faltando A Negra Senhora da Luz. Ela se foi para sempre, em 1981, num último e misterioso ato de sua magia encantadora.
(Ruy Póvoas. Publicado na Folha Regional: o Jornal do Recôncavo. Nazaré, BA, out. 1993. p. 9.)